A Identificação
Longe de ser simples, o caminho percorrido por refugiados demanda equilíbrio emocional. A preservação da identidade cultural em diferentes áreas é uma aliada importante nesse momento
A urgência de saber como será a vida em um lugar diferente, aflige todos aqueles que deixam a terra natal em busca de um novo lar. Qualquer mudança implica em se abrir para o desconhecido e viver novas experiências, mas para as pessoas que são forçadas a deixar suas casas, aceitar essa realidade não é tão simples. Sanadas as questões básicas como onde morar e como se manter num novo país, surge o choque de realidade com a cultura do outro.
O sentimento de não pertencimento começa a influenciar a vida dos refugiados e, para a maioria, gera medos e angústias. Para as refugiadas que são mães, os novos códigos culturais são bastante complicados por interferirem na criação de seus filhos. Apesar de algumas comunidades serem bem expressivas no Brasil, como a árabe, nem sempre é fácil ter acesso aos locais onde os costumes sejam parecidos. A refugiada síria Salsabil Matouk, conta que gostaria que sua filha de oito anos estudasse em uma escola islâmica, mas que não foi possível por conta da distância do local.
O que também contribui para que essas pessoas se sintam pertencentes ao país é a forma como são recebidas, que varia de acordo com a nacionalidade, etnia, gênero, orientação sexual, etc. A condição de refúgio não elimina o preconceito por questões como essas, pelo contrário, inclui outra categoria passiva de rejeição. Berenice Young, mestre em psicologia social e doutora em desenvolvimento humano pela USP, exemplifica o caso dos africanos que vêm para o Brasil, “muitos deles vêm de países onde não há discriminação por raça, existem formas de discriminação por tribos pertencentes, consideradas melhores do que outras no interior de países da África e por classe social, mas não por aparência física.”
Assim como acontece entre os cidadãos brasileiros, alguns refugiados são melhores aceitos ou mais toleráveis do que outros. A psicóloga acrescenta que os “desejáveis” são os brancos com poder econômico superior, que apesar da situação de refúgio, tem maior facilidade na integração social. Fato reforçado pelo aumento da onda de ideologias conservadoras no país e no mundo, que legitimam pensamentos e ações intolerantes.
Além das fronteiras
A xenofobia está muito associada ao racismo. No Brasil, essa questão está diretamente ligada ao longo período de escravidão, passado que afeta até hoje a visão dos brancos sobre os negros, sejam eles nativos ou não. No entanto, contrariando a perspectiva racista que inferioriza esses refugiados por sua cor, os africanos possuem altos níveis de educação e pertencem ao setor médio da população de seus países.
A psicóloga Berenice Young explica que “são pessoas com níveis culturais bem superiores ao brasileiro médio. Elas têm no mínimo segundo grau completo e muitas vezes uma graduação concluída e até mestrado. São pessoas que pagaram por educação, já que não existe educação pública na África. Para eles é um choque enorme, pois não são tratados como pertencentes ao setor do qual provêm.”
O tratamento ofensivo trava um embate sobre a fama de país receptivo e demonstra que a cordialidade brasileira é, muitas vezes, um mito. Alanna Alessia, acadêmica em Direito e pesquisadora do tema Direito Internacional e Direitos Humanos, afirma que, se comparado a outras nações, o Brasil oferece uma recepção mais calorosa, o que não significa necessariamente uma aceitação por parte da população. Alessia acredita que isso acontece por ser um ambiente miscigenado e um povo multicultural, mas acrescenta que há muito o que melhorar. “Ultimamente o Brasil passa por uma inversão absurda nesse conceito, principalmente em relação aos venezuelanos. Há alguns meses, brasileiros atearam fogo e expulsaram venezuelanos em Roraima. A intolerância tem tomado um espaço muito grande no meio social e fazendo com que o nosso povo se torne cada vez mais xenofóbico”, diz. A pesquisadora ainda lembra que existem comportamentos xenofóbicos até mesmo entre as regiões do Brasil e exemplifica com os ataques de alguns estados do Sul ao Nordeste.
Até alguns anos atrás, era comum que os brasileiros acreditassem que refugiados eram criminosos ou fugitivos da justiça e, por isso, essas pessoas nem sempre eram aceitas. A situação não foi totalmente sanada, mas o trabalho realizado pela ONU e por diversas ONGs para levar informação e esclarecer mitos em relação ao tema, melhorou a visão da população em relação aos refugiados. Porém, a dificuldade de aceitação do recém-chegado é um problema universal, visto que o diferente incomoda.
Um exemplo pouco falado no Brasil é o das guerras que assolam o continente africano há anos. As notícias dos veículos de informação nacionais sobre o assunto estão frequentemente desatualizadas, ou ainda, descontextualizadas. A comoção se manifesta mais expressivamente em casos como o do menino sírio que foi encontrado morto numa praia da Turquia, em 2015. A foto viralizou no Ocidente, trazendo maior visibilidade para a situação do refúgio. Aylan Kurdi, o garoto refugiado de três anos, possuía pele branca, estava bem vestido e poderia ser facilmente confundido com uma criança brasileira ou americana de classe média. Imagens semelhantes envolvendo crianças negras circulam com frequência, mas não causam o mesmo nível de comoção. O sentimento de solidariedade se manifesta com maior facilidade em relação àquilo que é similar.
A liberdade de ser
Mesmo com a violência direcionada à população negra, além dos altos índices de feminicídio e casos de lgbtfobia, o Brasil atrai pessoas pela imagem estereotipada do país do carnaval e do futebol, com um povo diverso e caloroso. No entanto, a emergência que o refúgio pede não deixa tempo para nenhuma análise sobre a vida em outro local.
Para a população LGBTI que vive em lugares como a Nigéria, onde as relações homossexuais e a luta pelos direitos são criminalizados, se deparar com um país em que o casamento e a união estável entre pessoas do mesmo sexo é um direito garantido, já é o suficiente para que se sintam protegidas. Berenice Young explica que a situação de anonimato que a migração oferece é algo desejado por muitas pessoas que sofreram rejeição ou discriminação pela sua orientação sexual. “Muitos vieram por esse motivo, mas como antes não era falado, a situação não ficava explícita e ainda hoje existem situações semelhantes”, afirma a psicóloga. Estima-se que aproximadamente 40 nações reconhecem solicitações de refúgio ligadas à perseguições por orientação sexual. O Brasil faz parte dessa lista e a Constituição Federal Brasileira protege todas as pessoas contra qualquer forma de discriminação.
Entre 2010 e 2016, foram identificadas 369 solicitações de refúgio relacionadas ao tema no Brasil, segundo levantamento de dados do ACNUR. A pesquisa também indicou que a maior parte dos pedidos são do continente africano. No geral, quando se encontram em condição de refúgio, as mulheres lésbicas são triplamente marginalizadas: (1) por serem refugiadas; (2) pela orientação sexual e; (3) por serem mulheres.
Pensando na importância de garantir que pessoas refugiadas LGBTI conheçam seus direitos e saibam onde buscar apoio, além de informar a sociedade brasileira sobre as necessidades de proteção específicas dessa população, a campanha da ONU Livres & Iguais e o ACNUR desenvolveram a Cartilha informativa sobre a proteção de pessoas refugiadas e solicitantes de refúgio LGBTI.
Para as mulheres no geral, independente de orientação sexual, a situação não é a mais favorável. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil é o 5° país com o maior índice de feminicídio no mundo. O Atlas da Violência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostrou que o número de assassinatos de mulheres negras cresceu 29% entre 2006 e 2016. Os números demonstram que ainda falta muito para que esse grupo social deixe de ser uma minoria. Por isso, é importante que existam projetos e ações com o intuito de dar voz e protagonismo à multiplicidade de mulheres no país.
Prudence Kalambay, refugiada congolesa que vive no Brasil há 11 anos, conta que quando chegou, sua situação era de mulher, refugiada, negra e mãe solteira. Ativista dos direitos das mulheres desde quando morava na República Democrática do Congo, foi eleita Miss Congo em 2004 e aproveitou sua voz para criar um projeto que ajudava mulheres que foram mães jovens, assim como ela, com a intenção de compartilhar diferentes perspectivas sobre a questão.
Depois que chegou ao território brasileiro, juntou a condição de refugiada à sua história de vida e começou a palestrar. “Eu peguei minha história, tudo o que passei e levei para o meio da mesa, no bate-papo, na conferência.” A coragem de Prudence tomou uma proporção ainda maior e ela passou a ser porta-voz das mulheres refugiadas. A congolesa prefere se intitular africana, porque acredita que a representatividade de todas as mulheres, especialmente do seu continente, é muito importante e não deve se restringir apenas ao seu país. Aos poucos, sua visibilidade aumentou e foi convidada pela Rede Globo para uma participação especial na novela “Órfãos da Terra”, em exibição no horário das 18h, com a temática sobre refúgio.
Entre muitos paradoxos, o Brasil segue sendo um país com quase 210 milhões de habitantes diversos. Milhões de vozes que buscam garantir seus direitos e os daqueles que foram silenciados. Nesse Brasil de contrariedades, os refugiados conseguem encontrar ao menos um lugar em que existe a possibilidade de lutar contra as opressões. Porém, a luta demanda o enfrentamento de barreiras culturais, assim como a preservação da saúde mental dessas pessoas, já afetada pelas circunstâncias.
Resistir e reexistir
A psicóloga Berenice explica que os dois primeiros anos de um refugiado num novo local são de aprendizagem urgente. Nesse período de adaptação, muitos não se permitem adoecer ou se deprimir porque vieram com o propósito de sobreviver. Por isso, tentam esquecer os motivos pelos quais fugiram para evitar dores emocionais, que muitas vezes acabam resultando em sintomas físicos. No vídeo, a psicóloga explica como as situações enfrentadas pelos refugiados, em especial pelas mulheres, influenciam o comportamento e a saúde mental deles.
Nos países com culturas patriarcais acentuadas, o homem se sente angustiado e tem a autoestima afetada quando não consegue cumprir o papel de sustentar a casa, o que frequentemente acontece quando chega ao Brasil e não encontra trabalho. Já a mulher, que possui maior responsabilidade de manter os vínculos familiares, sofre com a separação que o refúgio provoca, obrigando as famílias a se dispersarem pelo mundo.
Além da saudade dos familiares, todo o contexto em que viviam faz falta. Por estarem acostumados com um outro código, a identificação cultural com o novo intimida. A religião é uma grande aliada quando o assunto é resgatar memórias do país de origem. Pela diversidade religiosa do Brasil, é viável que se reconectem com suas crenças, principalmente para quem vive em regiões como a grande São Paulo.
Para Prudence, é importante se integrar e fazer amigos brasileiros. Alguns costumes são mais fáceis de aceitar do que outros, como por exemplo, a moda feminina. “Na minha cultura é totalmente diferente, aqui a mulher tem liberdade, mas no meu país sou contra. É como falar para uma mulher árabe tirar o hijab, ela não vai. [...] E também não é do meu perfil. Eu represento a África e o Congo e se uso uma roupa decotada, isso não representa o meu país. Algumas coisas eu concordo, outras não. Respeito, mas não vou fazer e nem deixar que meus filhos façam”, explica a congolesa.
A dança, a música e a poesia são formas que encontrou de se manter próxima à sua cultura. Frequentemente Prudence faz apresentações em diferentes unidades do Sesc de São Paulo e leva seu trabalho para o público local que não conhece a cultura de onde vem.
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"É assim que eu tento levar a minha África e o meu país. Levantar a autoestima mostrando que nós somos africanas, mas não somos coitadas, não somos o que a mídia fala. Saímos sem roupas mas com bagagem intelectual, essa é a imagem que eu gosto de mostrar
A busca pela conservação dessas diferentes identidades possui outro integrante bastante relevante: a culinária. Foi unanimidade entre as seis refugiadas entrevistadas para esta série de reportagens, que a comida típica de seus respectivos países faz muita falta. O costume com a comida local é tão natural que muitas vezes sua influência no cotidiano passa despercebida.
As refugiadas sírias Nisreen e Salsabil, usam a culinária árabe não só para resgatar vínculos, mas também como fonte de renda. Apesar disso, sentem falta de temperos particulares de seu país, difíceis de encontrar no Ocidente. A congolesa Maguy estranha a quantidade de carne consumida no Brasil, já que na África era acostumada a se
alimentar com diferentes tipos de folhas, como a da mandioca. A venezuelana Mary, afirma que só é possível fazer arepas, prato típico da Venezuela, com a farinha de milho própria de lá.
Prudence Kalambay
(Fotos: Sofia Hermoso)
Coisas simples, mas que fazem a diferença. Até nos mínimos detalhes, a saudade existe. A via atravessada por essas - e tantas - mulheres, é repleta de histórias e sentimentos dos mais variados. Gratas por conseguirem uma nova chance no Brasil, seguem na tentativa de reconstruir a vida que não pôde ser vivida onde gostariam. Todas as pessoas refugiadas e suas narrativas de sobrevivência alertam para a necessidade de resgatar a humanidade em um mundo - muitas vezes - tão desumano.