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Salsabil

Matouk

     No fim do corredor de um prédio em São Caetano do Sul, região metropolitana de São Paulo, a porta estava aberta e Wald, um garoto de 4 anos que usava pijamas, olhava em direção às escadas esperando as visitas. Ele estava ansioso para descobrir se alguma criança iria chegar. Em plena segunda-feira ele não tinha ido à escola porque estava com febre. Wald é um dos três filhos de Salsabil Matouk (32), refugiada síria que vive no Brasil há 4 anos.

 

Nascida na Síria, Salsabil se mudou ainda pequena para a Arábia Saudita por conta do trabalho do pai. Aos 17 anos foi estudar Farmácia na Jordânia, onde conheceu o marido, também  sírio. Por conta da nacionalidade, eles não podiam trabalhar na Jordânia e resolveram voltar para o país de origem. A vida era boa e tranquila até que, dois anos depois, a Guerra Civil na Síria teve início.

 

“No começo as pessoas saíram às ruas porque queriam uma vida melhor, salário, saúde e educação melhores, sabe, igual aqui. Depois, com a intervenção de outros países, virou uma bagunça”, conta Salsabil. Nesse período, tinha dias em que faltava água e eletricidade em Douma, cidade em que morava há 10km de Damasco, capital do país. O marido Salem, trabalhava em Damasco e não conseguia voltar para casa quando a estrada era bloqueada.

 

Salsabil está no Brasil desde 2015, mas saiu da Síria pela primeira vez por conta da guerra no ano de 2012. Primeiro foi para a Jordânia, onde ficou alguns meses hospedada na casa de sua sogra, e depois optou por ir para a Arábia Saudita, país em que a sua família mora. O marido permaneceu na Jordânia e a decisão de vir para o Brasil foi realizada à distância. Grávida de 8 meses, com uma filha pequena e o marido, embarcou com destino à cidade de São Paulo. Desde então, ela, o marido e os três filhos moram em São Caetano do Sul, cidade apresentada por um amigo que já vivia no Brasil.

Ao iniciar sua narrativa sobre o refúgio, Salsabil afirma: “Eu não sofri muito como as outras pessoas, porque deu um ano e eu já saí”. Com um pai médico e vinda de uma família que nunca passou por muitas dificuldades na Síria, Salsabil encontrou em território brasileiro uma barreira maior do que atravessar o Oceano Atlântico: a Língua Portuguesa. Logo na chegada ao aeroporto, foi surpreendida no guichê da Polícia Federal, onde são feitas as solicitações de refúgio. O formulário a ser preenchido estava em português e não havia um tradutor disponível para orientação. A demora no processo de solicitação de refúgio se deu por conta do despreparo brasileiro ao atender estrangeiros.

 

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Apesar desse episódio, a síria elogia a equipe médica brasileira que fez o atendimento quando ela entrou em trabalho de parto de seu segundo filho, Wald. Ainda sem falar português, recebeu ajuda de uma enfermeira, que levou uma amiga que falava árabe para traduzir e explicar o que iria acontecer. Para Salsabil, os brasileiros estão sempre dispostos a ajudar da forma que puderem.

Vinda de uma cultura em que o homem é o responsável por trabalhar e sustentar a casa, Salsabil teve dificuldade para adaptar-se à realidade brasileira, em que todos da casa precisam gerar renda. Na Síria, cerca de 80% das vagas de trabalho são para homens, sendo mais comum as mulheres trabalharem, quando necessário, na farmácia ou como professoras.

 

Salsabil e o marido Salem fazem parte de uma minoria entre os refugiados no Brasil: além de serem reconhecidos, conseguiram revalidar o diploma de farmacêuticos sem nenhum custo, com ajuda da Associação Compassiva. Mesmo assim, tiveram que buscar outras formas de sustentar a casa, já que o nível de especialização na área também é um fator que impede muitos refugiados de atuarem em suas profissões.

 

O cheiro vindo da cozinha não engana: Salsabil é uma cozinheira de primeira. As encomendas de comida árabe ajudam a complementar a renda da casa. A página no Facebook, “Cozinha de Salsabil” está repleta de elogios. Para ela, foi fácil iniciar os trabalhos na área porque os brasileiros comem de tudo e estão sempre dispostos a experimentar comidas diferentes. Já o marido, trabalha em uma transportadora longe de casa e encara uma longa jornada de transporte público todos os dias.

 

Nos últimos quatro anos, a mulher oriental e muçulmana segue mantendo viva sua cultura em um Ocidente marcado pela miscigenação cultural e racial. O que para Salsabil Matouk é um abismo cultural entre seu passado e presente é, para o Brasil e os brasileiros, uma nova possibilidade de demonstrar o sempre positivo - mas nem sempre verdadeiro - estereótipo de país acolhedor.

 

No caso da síria, o estereótipo se faz real: os amigos que fez no Brasil respeitam sua religião. Não consomem álcool na presença dela e da família e sempre cozinham de acordo com o que o islamismo permite. Entre esses pequenos detalhes é que o abismo se torna cada vez menor e mais fácil de enfrentar.

(Foto: Sofia Hermoso)

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(Foto: Sofia Hermoso)

Dentro de casa, a família conversa em árabe e todos frequentam a mesquita e seguem as regras do islamismo. Nem sempre é fácil explicar para as crianças as diferenças culturais e religiosas. Salsabil tentou colocar a filha mais velha, Jury (8) em uma escola islâmica, mas as opções eram muito distantes. Hoje, enquanto os pequenos Wald (4) e Yasmin (2) frequentam uma creche, Jury estuda em uma escola pública. “É difícil, você sabe, porque ela olha uma coisa, você fala outra coisa, mas a gente tem que tentar.”

 

Em alguns momentos, a vida no Brasil ainda é complicada. Os valores tradicionais do islamismo se chocam com a cultura ocidental e laica do Brasil. Quando as pessoas se vestem com roupas muito curtas, bebem e se beijam nas ruas, Salsabil lembra de como é diferente em seu país, onde até mesmo os cristãos respeitam os princípios muçulmanos.

 

Da última vez que teve notícias sobre a casa em que morava na Síria, ela ainda estava intacta. Hoje, já não tem certeza. Antes dos ataques anunciados no interior do país, a capital avisava para que a população saísse . Em uma das vezes, chegaram a ficar cerca de um mês hospedados na casa de um parente até serem notificados de que poderiam entrar novamente em Douma. Algumas vezes, as portas eram abertas apenas por um dia para que pudessem buscar algo que tivesse ficado para trás. Como era proibido entrar de carro, o único meio disponível era o ônibus, que limitava a quantidade de coisas que podiam carregar. Da última vez que voltou para a cidade conseguiu pegar apenas duas malas de roupas. Sabia que não tinha data para voltar e não olhou para trás.

 

Decidida, Salsabil não pretende voltar para a Síria. Quanto ao fim da guerra, ela não é muito otimista. “Não vai acabar. Até acabar, eu já comecei aqui. Comecei do zero. Para mim, eu vou começar do zero lá, é muito difícil de novo. Meus filhos já são todos brasileiros.”

 

Encantada pela hospitalidade do brasileiro, a mulher síria espera se acostumar melhor com as diferenças. “Vocês são muito felizes, gostam de festa, sorriem muito”, diz a síria, que também sorri o tempo todo. Ultrapassada a difícil fase de adaptação sem nenhuma ajuda de custo do governo brasileiro, Salsabil ainda estranha a mudança econômica em sua vida. “Aqui no Brasil a vida é difícil, todos em casa tem que trabalhar, eu, meu marido e os filhos”. Resiliente, a síria pretende fazer mestrado e vive envolvida com várias ONGs de apoio aos refugiados, buscando sempre encontrar - mesmo com obstáculos - um Brasil acolhedor do qual ela tanto gosta.

A guerra na Síria

     Em 2019, a Guerra Civil na Síria completa oito anos, ainda sem perspectiva de um fim. O conflito teve início em 2011, quando a população foi às ruas para protestar a favor da democracia e da melhora de direitos básicos, como saúde, educação e liberdade política. O que começou de forma pacífica, foi sufocado de forma violenta pelas tropas do presidente Bashar al-Saad. No poder desde o ano de 2000, quando assumiu no lugar de seu pai, Hafez al-Saad, Bashar é tido como ditador pela oposição e por grupos rebeldes que estão no meio do conflito sírio.

 

Os manifestantes exigem a saída do presidente desde 2011, quando a violência começou a tomar conta dos protestos. Em 2012, a capital Damasco e a maior cidade síria, Aleppo, foram tomadas por conflitos entre os apoiadores de Assad e seus opositores, tornando-se uma guerra sectária, entre a maioria sunita e os xiitas alauítas, ramo do Islamismo do qual faz parte o presidente.

 

Desde então, a revolta armada tomou enormes proporções, principalmente com a participação de potências internacionais e regionais, cada qual defendendo seus próprios interesses no território sírio.

 

Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), a maior crise humanitária da história recente já forçou mais da metade da população síria a deixar suas casas, sendo que mais de 5,6 milhões são refugiados e mais de 6 milhões são deslocados internos.

 

A maioria desses refugiados vivem em situação de extrema pobreza, principalmente os que estão fora dos acampamentos e campos de refugiados. Entre os mais vulneráveis, estima-se que 70% sejam mulheres e crianças e que em torno de 700 mil crianças estejam sem estudar por conta do conflito.

 

Com mais de 500 mil mortos desde 2011, a Síria segue sendo palco de uma guerra que já durou mais do que a Segunda Guerra Mundial. Muitos dos patrimônios do país foram destruídos pelos conflitos. 

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